A validade da prova documental em formato digital nos processos brasileiros

O advento da Lei 11.419/2006, que instituiu o processo eletrônico nos tribunais brasileiros, e, mais ainda, a difusão universal dos sistemas informáticos como meios de gestão, escritura e comunicação resultaram numa explosão de documentos em formato digital (entendendo como tais tanto arquivos eletrônicos quanto documentos em geral, integralmente impressos a partir de computadores) utilizados como provas em processos tanto cíveis quanto penais.

O conceito de prova pode ser resumido, em termos gerais, como a demonstração da existência e veracidade dos fatos alegados pela parte no processo.

Destarte, como base para esta discussão, é necessário salientar os princípios da “livre admissibilidade das provas” e do “livre convencimento motivado do Juiz” (consubstanciado por quanto disposto pelo artigo 93, IX, CF/88, combinado com os artigos 155 do CPP e 371 do CPC/2015).

Neste sentido, a prova pode ser representada por qualquer meio legal (e moralmente legítimo) apto a demonstrar a verdade dos fatos alegados e a influir eficazmente na convicção do juiz (artigo 369 do CPC/2015). Em força de quanto acima, qualquer documento pode ser utilizado como prova (artigos 231 e 232, CPP), inclusive documentos em formato exclusivamente digital.

Por outro lado, porém, é oportuno registrar que não é admissível a prova ilícita, assim entendida aquela obtida em violação a normas constitucionais ou legais (artigo 157, CPP e artigo 5, LVI, CF/88). Ademais, é importante sublinhar outro princípio fundamental, que deve nortear a condução de qualquer processo assim como a valoração das provas apresentadas, a “busca da verdade real”.

Por essas razões, um documento falsificado certamente não poderia ser admitido como prova.

Postas essas premissas, vamos analisar alguns casos típicos de provas em formato digital apresentadas comumente em processos cíveis e penais:

  • arquivos contendo textos, planilhas ou bases de dados, criados através de softwares comerciais (como o MS Word, MS Excel ou MS Access), ou suas versões impressas;
  • arquivos em formato “puro texto”, criados com editores de texto ou capturados a partir de algum outro software, eventualmente organizados em algum formato;
  • telas de computador “capturadas” contendo imagens, telas de websites, telas de softwares variados (inclusive clientes de e-mail) etc.;
  • documentos de qualquer tipo (recibos, contratos, contas, cheques etc.), inclusive manuscritos ou parcialmente manuscritos, contendo ou não assinaturas, escaneados ou fotografados supostamente a partir de originais;
  • arquivos em formato PDF representando a impressão de todos os documentos acima descritos ou de outros, por exemplo, e-mails, extratos bancários (impressos a partir de internet banking) etc.

É necessário sublinhar que tais documentos têm características profundamente diferentes dos tradicionais documentos cartáceos, sendo, de forma geral, muito mais fáceis de falsificar em seu teor e conteúdo e sendo sensivelmente mais difícil comprovar sua real origem e autoria (que também pode ser simulada ou falsificada com grande facilidade).

Ocorre que, para cada uma das categorias acima, é perfeitamente possível (às vezes de forma extremamente simples, como no caso de arquivos de texto ou planilhas) fazer falsificações, na forma de montagens, alterações ou adulterações, que sejam virtualmente imperceptíveis a qualquer análise não especializada e que, em diversos casos, podem não ser comprováveis nem com uma análise profissional e profunda. Na maioria dos casos, tais falsificações não requerem um grau de especialização particularmente elevado por parte dos falsários. Constituem uma exceção, entre outras, os documentos que podem ser validados on-line (todos aqueles que têm indicação de um código de validação utilizável em algum site público) e aqueles assinados pelas partes utilizando um certificado digital (normalmente também verificáveis on-line).

Isso quer dizer que grande parte dos documentos em formato digital, assim como apresentados normalmente nos processos, poderia muito bem ser falsa em tudo ou em parte, sem que fosse possível detectar ou avaliar tal eventual falsidade com uma análise não profissional, ou seja, existe a possibilidade (bastante real e consistente) que processos estejam sendo julgados com base em documentos digitais falsos, que foram aceitos como provas válidas sem as devidas precauções. Penso, por exemplo, na esfera cível, aos processos “massificados” contra bancos, operadoras e outras empresas de grande porte, que, pelo volume de ações, frequentemente não têm condições de analisar todos os documentos juntados e arguir falsidade quando necessário, e, na esfera penal, a processos baseados em delações que “requerem” a apresentação de documentos de respaldo.

Por essas razões, entendo que a admissibilidade e validade de um documento em formato digital como meio de prova em um processo judicial deveria depender da prévia garantia e inequivocidade de sua autoria e origem e da certeza de sua integridade (ou seja, a garantia de que não foi alterado desde sua origem até chegar no processo). É importante sublinhar que, como já exposto anteriormente, nem todo tipo de documento em formato digital pode oferecer tais certezas e garantias, mesmo após uma análise profissional.

No processo penal, havendo documentos utilizados como provas, estes passam a integrar o corpo do delito e, em força do artigo 158 do CPP, deveriam sempre ser objeto de exame pericial antes de serem admitidos como provas válidas. Nem sempre isso acontece.

No processo civil, cabe à parte interessada, normalmente, a eventual arguição de falsidade e o pedido para que seja feita perícia sobre o documento contestado (obviamente o juiz é também livre de pedir autonomamente uma perícia, caso tenha dúvidas). Em tese, de acordo com o artigo 432 do CPC/2015, uma vez arguida a falsidade, deveria sempre ser realizada a perícia (salvo o caso em que a parte que produziu o documento concordar em retirá-lo). Na realidade, não é incomum que juízes, sobretudo na esfera trabalhista, ignorem tal determinação e julguem o processo sem fazer a perícia sobre o documento contestado (utilizando para tanto, frequentemente, o disposto pelo artigo 472 do CPC/2015).

Apesar de reconhecer a necessidade de tutelar a absoluta independência e o livre convencimento dos juízes, como perito e pesquisador, com ampla experiência em documentos em formato digital, considero a admissão e valoração como provas de documentos em formato digital ou de impressos criados a partir de computadores, sem uma prévia análise e perícia profissional, como uma postura extremamente arriscada, que desrespeita e pode facilmente lesar os princípios fundamentais da “busca pela verdade real”, do “devido processo legal” e da “ampla defesa”.

Evidentemente, não quero, com tudo isso, sustentar que deve ser negado o documento em formato digital como meio de prova. Se trata de uma tendência inevitável em decorrência da evolução tecnológica e da informatização da sociedade em geral. Desejo somente chamar a atenção sobre a necessidade de se estabelecerem, no Judiciário, novos e diferentes procedimentos padronizados e sistematizados para admissão e valoração de tais documentos, de forma a preservar princípios fundamentais do direito pátrio.


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